1- Introdução
O Ordenamento Jurídico Pátrio
dispõe no artigo segundo do Código Civil de 2002 que a personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei dispõe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro.
No ensinamento da doutrinadora Maria Helena
Diniz “O Código Civil, no artigo sub
examine, não contemplou os requisitos de viabilidade (habilis vitae), ou seja, permanência da vida no recém-nascido, e
forma humana para o início da personalidade natural, afirmando que a
personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, ainda que o
recém-nascido venha falecer instantes depois. Basta a vitalidade, pois “o
nascimento com vida torna, na mesma ocasião, o ente humano sujeito de direito
e, em conseqüência, transforma em direitos subjetivos as expectativas de
direito que lhe tinham sido atribuídas na fase da concepção” (RT, 182:438). ”
Vale mencionar que de acordo com a Resolução nº 1/88 do
Conselho Nacional de Saúde, o nascimento com vida é “a expulsão ou extração
completa do produto da concepção, quando, após a separação, respire e tenha
batimentos cardíacos, tendo sido ou não cortado o cordão, esteja ou não
desprendida a placenta”.
Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari “O fato de existir
a necessidade de viver em sociedade tem conseqüências muito sérias. Uma delas é
que os problemas de cada pessoa devem ser resolvidos sem esquecer os interesses
dos demais integrantes da mesma sociedade. Assim, não se pode admitir como
regra que resolver qualquer dificuldade de um indivíduo, ou para atender aos
interesses de um só, todos os demais devam sofrer prejuízos ou arcar com
sacrifícios”.
Continuando com supracitado autor “Existem certos casos
em que um direito de uma pessoa deve ser protegido mesmo que muitos tenham de
fazer algum sacrifico para assegurar essa proteção. É preciso, porém, que
esteja prevista numa regra legal legítima essa hipótese, sendo também
indispensável que tal proteção não signifique um privilégio a discriminação.
Todo indivíduo tem direito à proteção de sua liberdade, de sua integridade
física e de outros bens que são necessários para que uma pessoa não seja
rebaixada de sua natureza humana. Mas também em relação a esses direitos e
valores é preciso ter em conta que todos são iguais, devendo merecer a mesma
proteção”.
Na lição de Norberto Bobbio: “Todo grupo social está
obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o
objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente.
Mas até mesmo as decisões de grupos são tomadas por indivíduos (o grupo como
tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos,
muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada
com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que
estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões
vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos”.
“A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
54 foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde no
Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade da interpretação
segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria tipificado no
Código Penal nos artigos 124, 126 e 128, I e II onde prevaleceu o voto do
Ministro Relator Marco Aurélio de Mello vencido os Ministros César Peluso e
Ricardo Lewandowiski”. Maria Eugenia Bunchaft.
A caracterização da anencefalia é compreendida como uma
má-formação congênita sendo, portanto, ausência dos hemisférios cerebrais.
“Trata-se de uma alteração decorrente de falha no início do desenvolvimento
embrionário e do mecanismo de fechamento do tubo neural” Maria Eugenia
Bunchaft. No entanto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde afirma
em nota prévia ser em distintas as situações de antecipação terapêutica e a do
aborto, tendo em vista que este último pressupõe potencialidade de vida
extrauterina do feto. Resgata princípios constitucionais relativos à dignidade
da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade bem
como o direito à saúde. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde
considera que a antecipação terapêutica resgata os princípios acima citados por
se tratar de uma hipótese cujo tratamento eficaz é a interrupção da gestação
ante o feto estar com a saúde comprometida bem como o seu desenvolvimento.
A antecipação terapêutica se diferencia do
aborto pelo fato de se configurar em uma circunstância onde o feto já está
acometido pela anencefalia e a possibilidade de persistir a vida é ínfima. O aborto é configurado em casos de violência
sexual para que se preserve a mulher vitimada evitando que tal situação tenha
conseqüência de maior dano psicológico.
Sob uma perspectiva substancialista, Ronald Dworkin
sustenta que a interpretação racionalmente construída a partir de princípios
substantivos deve considerar, não apenas a Constituição como um todo, mas
também a história, as tradições e as práticas constitucionais. Seguindo este
raciocínio no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 54, o Plenário do Supremo Tribunal Federal utilizou-se de uma leitura moral
do Ordenamento Jurídico e de uma visão reconstrutiva que, superando auto
compreensões assimétricas de mundo, resguardou a independência ética de
mulheres e consagrou de forma normativamente sensível o ideal de integridade,
tão valioso a Dworkin.
A independência ética das mulheres faz com que as mesmas
se sintam amparadas juridicamente conferindo total discricionariedade sobre o
aborto de feto anencéfalo sem serem penalizadas, considerando que a sociedade
brasileira na atual conjuntura só favoreceu a mulher na Lei Maria da Penha. O
Ordenamento Jurídico devia um amparo legal às mulheres por uma questão de
ética. O ideal de integridade se faz necessário porque o aborto só será
permitido mediante o diagnóstico de anencefalia.
2-O papel da interpretação na teoria de Ronald Dworkin.
Dworkin
sustenta que é sempre possível encontrar uma interpretação que seja a melhor, a
única resposta correta para o caso concreto. Mas para que isso ocorra, é
necessário que se recorra a juízos morais, que é precisamente a atividade
realizada na etapa pós-interpretativa.
O
processo interpretativo de Dworkin passa pela fase de identificação do fato
jurídico, a adequação do fato às normas e princípios cabíveis para a solução da
lide, e então segue a fase de justificação da decisão, a busca da melhor
resposta ao caso apresentado. Dworkin sustenta que um juiz tem o dever legal de
analisar de modo mais abrangente as fontes de lei, os princípios e a história
jurídica da comunidade, de maneira que torne a atividade judiciária capaz de
alcançar os casos mais difíceis e ofereça a melhor resposta à lide apresentada
Entretanto,
mesmo reconhecendo as divergências quanto ao sentido das normas jurídicas,
Dworkin pretende que, ao se aplicar o método interpretativo proposto por ele,
possa-se conferir à norma jurídica um sentido mais consistente com a nossa
prática jurídica, analisada em uma perspectiva ampla.
Como
Dworkin adota uma teoria interpretativa, entende que as divergências não são
causadas imediatamente em razão da textura aberta das normas jurídicas, mas
porque há fortes argumentos de que uma interpretação diversa seria mais
coerente com os princípios e virtudes de nossa prática jurídica.
Em
outras palavras, a obscuridade de uma norma não deve ser apontada como uma
característica inerente à sua própria essência, mas presente pela simples razão
de existirem fortes argumentos de que outro sentido seria mais adequado frente
ao conjunto de princípios e virtudes de nossa prática jurídica.
No mesmo
texto, a autora diz que Dworkin cita as mulheres e homens como exemplo. É muito
importante que os juízes pensem nas pessoas, senão nada tem sentido. As leis
são feitas para as pessoas.
Por
isso que Dworkin afirma que “a
interpretação da prática social se concretiza dentro de seu próprio âmbito e
não fora dela”. Quer dizer, que a prática social dever ser tomada em conta como
prática social, não como outra coisa externa (outros valores que não são
observados na prática social, na vida social das pessoas). Isso quer dizer que
sempre deve se considerar quais são as práticas sociais dos sujeitos
implicados, e interpretar essas práticas. Sempre que se quer modificar uma lei
é importante saber o que acontece com as pessoas, nesse caso, com as mulheres.
2.1- ETAPAS DA
INTERPRETAÇÃO
O
intérprete deve encontrar “uma justificativa geral para os principais elementos
da prática identificada na etapa pré-interpretativa”. Essa justificativa
permitirá dizer qual (is) significado (s) é (são) adequado (s) à prática
analisada. Nessa fase também é necessário um certo acordo sobre quais
significados são adequados, pois pretendemos apenas interpretar e não inventar
algo novo.
Por
fim, na etapa pós-interpretativa, o intérprete deverá ajustar “sua ideia
daquilo que a prática das mulheres ‘realmente’ requer para melhor servir à
justificativa que ele aceita na etapa interpretativa”. Nesse momento,
pretende-se apontar, entre os significados considerados adequados aquele que
mostra a prática das mulheres sob sua melhor luz. Aqui, a justificativa
dependerá de convicções mais substantivas que aquelas apresentadas na fase de
adequação. Entretanto, “essas convicções não precisam ser tão compartilhadas
pela comunidade quanto a noção do intérprete acerca dos limites da
pré-interpretação, ou mesmo quanto a suas convicções sobre o devido grau de
adequação”.
Naturalmente,
como Dworkin reconhece, haverá divergências quanto às dimensões da prática
interpretada e, ainda maiores serão as controvérsias a respeito da melhor
justificativa para tal prática social.
Não
há propriamente apenas uma teoria interpretativa do direito, mas várias. As
teorias interpretativas de cada juiz são diferentes porque cada um deles tem
suas próprias convicções sobre a prática do direito: seus propósitos, objetivos
ou princípios justificativos são identificados individualmente.
2.2- CONCEPÇÕES DE
DIREITO
As
três concepções interpretativas do direito: “convencionalismo”, “pragmatismo
jurídico” e “direito como integridade”. Apenas a primeira e a última, aceitam
essa proposta de justificativa geral do direito.
Para
um pensador convencionalista, o direito é aquilo que realmente é, e não o que
deveria ser. Assim, a tarefa do juiz é simplesmente aplicar esse direito, sem
procurar modificá-lo de acordo com sua própria ética ou política.
O
pragmatismo jurídico, por sua vez, “nega que as decisões políticas do passado,
por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo
do Estado”. Assim, contesta o argumento de que as pessoas tenham direitos com
base em decisões políticas do passado. Entretanto, por razões de estratégia,
para evitar a perda de controle pelo governo e, desta forma, piorar a
comunidade como um todo, o pragmatismo jurídico pode optar por disfarçar sua
decisão real simulando a aplicação da lei.
Assim,
o pragmático apenas olha para a tradição jurídica constituída pelas decisões
políticas do passado como estratégia para disfarçar as decisões que toma com
base numa perspectiva do que será melhor para a comunidade no futuro. Desta
forma, não rejeita as pretensões morais ou políticas.
A
integridade é, por definição, uma questão de princípio. Assim, na concepção do
direito como integridade, “as proposições jurídicas são verdadeiras se constam,
ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que
oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade”.
A
coerência de princípios permite que os cidadãos tenham direitos não declarados
explicitamente na legislação e nos precedentes, mas apenas implicitamente
reconhecidos através de princípios que justificam essas decisões políticas do
passado.
Por
isso acreditamos que no processo de decisão deve-se predominar a integridade no
caso da anencefalia pois como foi dito, permite que as pessoas tenham direitos
não declarados na legislação, através da coerência de princípios.
2.3-CONCLUSÃO
Dworkin
parte do pressuposto de que o direito é interpretativo, de maneira que os juízes
devem decidir o que é o direito, interpretando-o. Assim, teorias gerais do
direito são, na realidade, interpretações gerais de nossa própria prática
judicial.
Entre
as concepções interpretativas que considera (“pragmatismo jurídico”,
“convencionalismo” e “direito como integridade”), destaca o direito como
integridade.
É
a integridade que, para Dworkin, explica melhor o que é o direito. Mas a
integridade não se impõe por si mesma. Tanto as convicções a respeito da
adequação quantos aquelas sobre a equidade, a justiça e o devido processo legal
adjetivo, são conflitantes entre si. Assim, o intérprete deve considerar esses
conflitos e tentar tornar “o histórico legal da comunidade o melhor possível do
ponto de vista da moral política”. Por conseguinte, o direito como integridade
teria o condão de oferecer uma melhor adequação e uma melhor justificação de
nossa prática jurídica como um todo.
Portanto,
para Dworkin, a teoria geral do direito é interpretativa e justificadora, e,
mais do que isso, é parte do próprio direito, como parte geral de qualquer
decisão.
Entende-se
que o direito não pode ser descrito, mas apenas interpretado, pois essa é a
melhor explicação do que é o direito. A preocupação de Dworkin em delinear uma
teoria do direito como integridade, levando-o à firme tentativa de adequá-la e
justificá-la como a teoria que mostra nossa prática jurídica sob sua melhor
luz, reflete sua concepção de que o direito apenas pode ser interpretado e não
descrito.
3-Alguns
Aspectos do Julgamento da ADPF n. 54
Para
o advogado da época (hoje ministro do STF) Luis Roberto Barroso, ao declarar a
não incidência do Código Penal a uma determinada situação, estaria o STF
interpretando a constituição, "Como se sabe, o Tribunal, por maioria,
conheceu da ação, reconhecendo tratar-se de uma questão de interpretação
constitucional e não de criação de direito novo." (BARROSO, 2006, p. 701).
Ainda
é possível acrescentar que, de acordo com Maria da Conceição Ferreira da Cunha,
“A lei não é apenas um instrumento para conduzir processos sociais de acordo
com conhecimentos ou prognoses sociológicas; ela é ainda expressão estável de
avaliações ético-sociais e, portanto, jurídicas, das ações humanas, ela deve
dizer o que para cada um é direito’’. (Apud PATTO, Pedro Maria Godinho
Vaz. O sentido da criminalização do aborto. Revista Portuguesa de Ciência
Criminal. Coimbra: Almedina, jan.-mar. 2005. p.41.)
O
Código Penal não pune nem o aborto necessário nem o humanitário. O pedido
inicial da ADPF n. 54 era o de que o STF declarasse a não incidência da
criminalização da antecipação terapêutica à luz da Constituição Federal e dos
princípios a ela inerentes por meio de uma interpretação evolutiva que permite
a adaptação do texto legal à evolução da sociedade. Assim, “[...] impor à
mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de
certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa
violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana”. (BARROSO, 2006, p.
684).
Em
01 de julho de 2004, o pedido liminar foi concedido pelo Min. Marco Aurélio
Mello, assegurando o direito da gestante em optar pela antecipação terapêutica
do parto, se for comprovado à anencefalia por laudo médico. A liminar teve
efeitos por mais três meses, pois, em 27 de abril de 2005, foi tornada sem
efeito pelo Plenário do STF, por sete votos a quatro; entretanto, igual votação
admitiu que a ADPF fosse processada para que seu mérito fosse apreciado. Nessa
ocasião, os Ministros Carlos Ayres de Britto, Gilmar Mendes, Sepúlveda Pertence
e Nelson Jobim posicionaram-se rejeitando o argumento segundo o qual seria
incabível a propositura da ADPF n. 54. Permaneceram vencidos os Ministros Eros
Grau, Cesar Peluso e Ellen Gracie, que não conheceram da ação, sob o argumento
segundo o qual a mesma ofenderia a separação de poderes, criando uma nova
hipótese de exclusão da ilicitude para o aborto. Com efeito, no julgamento de
mérito realizado em abril de 2012, o Ministro Relator, Marco Aurélio Mello e o
Min. Celso de Mello destacaram que a Constituição consagra a laicidade. De
acordo com o Min. Marco Aurélio Mello, a laicidade do Estado atuaria de modo
dúplice: salvaguardaria as diversas confissões religiosas do risco da
intervenção estatal e impediria que dogmas da fé determinassem o conteúdo dos atos
estatais.
Nessa linha de raciocínio, o Ministro relator citou a Resolução n.
1.752/2004 do Conselho Federal de Medicina, que consignou serem os anencéfalos
natimortos cerebrais. Assim, o direito à vida de um feto inviável não pode
prevalecer sobre a dignidade da pessoa humana, privacidade, saúde e integridade
física e psicológica da mãe. Nas palavras do Ministro
relator, ’’[...] o
anencéfalo jamais se tornará pessoa. Não se cuida de vida em potencial, mas de
morte segura. O fato de respirar e ter batimento cardíaco não altera essa
conclusão, até porque, como acentuado pelo Dr. Thomaz Rafael Gollop, a
respiração e o batimento cardíaco não excluem o diagnóstico de morte cerebral. ’’
(BRASIL, 2012)
Em
síntese, o Marco Aurélio Mello também refutou o argumento de que se trata de
aborto eugênico, pois não se cuida de feto portador de deficiência grave que
permita sobrevida extrauterina. Inexiste direito à vida dos anencéfalos, pois
anencefalia e vida são termos antiéticos. Ademais, nas décadas de 1930 e 1940, a
medicina não possuía recursos tecnológicos para identificar previamente a
anencefalia.
Impor
a manutenção da gravidez pode implicar o aumento da morbidade e dos riscos do
parto e do pós-parto, além de consequências psicológicas severas. Por outro
lado, Celso de Mello, Marco Aurélio Mello e Rosa Weber destacaram que inexiste
direito à vida, tendo em vista o conceito jurídico de morte previsto na Lei n.
9.394/97. Para o Min. Marco Aurélio Mello, eventual direito à vida do
anencéfalo cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da
pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à
integridade física psicológica e moral e à saúde). Em suma, deverão observar o
princípio da razoabilidade-proporcionalidade, inclusive e especialmente na
vedação do excesso.
O
Ministro Celso de Mello, ainda que não se entenda típico, não há delituosidade
por inexigibilidade de conduta diversa. Não se pode obrigar a mulher a
prolongar a gravidez, com prejuízos à saúde física e devido aos altos índices
de letalidade, segundo o depoimento do Dr. José Aristodemo Pinotti, Professor
da Unicamp. (BRASIL, 2012).
O
Min. Marco Aurélio Mello salientou também que inexiste direito à vida dos
anencéfalos, mas que, ainda que existisse, não seria absoluto, tendo em vista o
artigo 5º, inciso XLVII da CF, que admite a pena de morte em caso de guerra
declarada na forma do artigo 84, inciso XIX, além de o direito à vida não ser
absoluto, a proteção a ele conferida comporta diferentes gradações consoante
enfatizou o Supremo no julgamento da ADI n. 3.510. ” (BRASIL, 2012).
O Ministro relator citou o depoimento do Dr.
Jorge Andalaft Neto, representante da Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia, que enfatizou o fato de a gestação de feto
anencéfalo envolver maiores riscos, tendo em vista dados da Organização Mundial
de Saúde e do Comitê da Associação de Ginecologia e Obstetrícia Americana.
Impor a manutenção da gravidez pode implicar o aumento da morbidade e dos
riscos do parto e do pós-parto, além de consequências psicológicas severas.
Para o Min. Marco Aurélio Mello, eventual direito
à vida do anencéfalo cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à
dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade,
à integridade física psicológica e moral e à saúde.
Diferentemente,
o Min. Gilmar Mendes considerou inadequado tratar a antecipação terapêutica da
gestação de anencéfalos como atípico, pois parte da sociedade brasileira
defenderia a vida e a dignidade desses fetos. Alegou a possibilidade de
defender o aborto de fetos anencéfalos a partir das opções legislativas de
excludentes da ilicitude já existentes no Código Penal, sendo hipótese de
estado de necessidade. Constatou que o aborto de fetos anencéfalos deveria
estar compreendido entre as causas excludentes da ilicitude previstas no Código
Penal, mas seria inimaginável para o legislador de 1940, pelas limitações
tecnológicas existentes, incluir a hipótese no texto legal.
Nessa
perspectiva, o Min. Luiz Fux destacou que o princípio da proporcionalidade não
se restringe à categoria de proibição de excesso, contemplando também um dever
de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a violações contra direitos
fundamentais de terceiros: a violação da proibição de insuficiência. Diante do
exposto, depreende-se que o princípio da razoabilidade- -proporcionalidade,
além de parâmetro de validade para restrições a direitos fundamentais, também
atua na dupla dimensão de proibição do excesso e da insuficiência.
"Um bebê anencéfalo
é geralmente cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor. Apesar de que
alguns indivíduos com anencefalia possam viver por minutos, a falta de um
cérebro descarta complementarmente qualquer possibilidade de haver consciência.
[...] Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal equivale à tortura”, (Luiz
Fux)
A
Ministra Carmem Lúcia destacou que a questão discutida seria o direito à vida e
à liberdade, considerada a possibilidade jurídica de a grávida de feto
anencéfalo escolher qual seria o melhor caminho a ser seguido, quer
continuando, quer interrompendo a gravidez. Reportou-se também ao princípio
constitucional da dignidade da pessoa e ao direito à saúde. (BRASIL, 2012).
Sob
esse aspecto, o Min. Celso de Mello mencionou que a Declaração Americana sobre
Direitos da Pessoa Humana e Pacto Internacional das Nações Unidas sobre
Direitos Civis e Políticos consagraram a inviolabilidade do direito à vida, mas
não incorporaram a noção de direito à vida desde a concepção.
É
de se mencionar que, para o Min. Carlos Ayres de Britto, a gravidez se destina
à vida, não à morte. A vida humana surge com o zigoto, mas não se deve
confundir embrião de vida humana com vida humana embrionária (BRASIL, 2012).
“[O aborto do feto
anencéfalo] é um direito que tem a mulher de interromper uma gravidez que trai
até mesmo a ideia-força que exprime a locução ‘dar à luz’. Dar à luz é dar à
vida e não dar à morte. É como se fosse uma gravidez que impedisse o rio de ser
corrente”, (Carlos Ayres Britto).
[...],
sobretudo a autonomia de vontade ou liberdade para aceitar, ou deixar de
fazê-lo, o martírio de levar às últimas conseqüências uma tipologia de gravidez
que outra serventia não terá senão a de jungir a gestante ao mais doloroso dos
estágios: o estágio de endurecer o coração para a certeza de ver o seu bebê
involucrado numa mortalha. Experiência quiçá mais dolorosa do que a prefigurada
pelo compositor Chico Buarque de Hollanda (‘a saudade é o revés de um parto. É
arrumar o quarto do filho que já morreu’), pois o fruto de um parto anencéfalo
não tem se quer um quarto previamente montado para si. Nem quarto nem berço nem
enxoval nem brinquedos, nada desses amorosos apetrechos que tão bem documentam
a ventura da chegada de mais um ser humano a este mundo de Deus. (Carlos Ayres
Britto).
De
um lado, os Ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes assinalaram a relevância
da pluralização do debate constitucional, garantindo legitimidade democrática
ao STF. De fato, Gilmar Mendes pressupôs um norte interpretativo a partir da
leitura do aborto humanitário, que também resguarda a saúde psíquica da
gestante, sendo necessário adaptar as leis a novos aspectos da realidade social
para vislumbrar causas supralegais de exclusão da juridicidade e culpabilidade.
O
Min. Peluso ressaltou a necessidade de preservar a dignidade da vida intrauterina
destacou que todos os fetos anencéfalos, a menos que já estivessem mortos,
seriam dotados de capacidade de movimento autógeno vinculado ao processo
contínuo da vida. A dignidade humana independe das deficiências que o feto
possa porventura vir a ter, sendo insuscetíveis de o transformarem em coisa.
Na
sua percepção, transformar o feto em objeto de disposição alheia é equipará-
-lo a coisa e somente ela é objeto de disposição alheia, pois ser humano é
sujeito de direito. A vida humana com sua dignidade intrínseca não pode ser
relativizada fora das hipóteses legais. Na sua interpretação, reduzir o
anencéfalo à condição de lixo, implica a aproximação com práticas eugênicas. A
analogia com a presunção de morte por cessação da atividade encefálica, visando
retirada de tecidos, órgãos para fins de transplante, não é adequada, pois
nesse caso o aborto não visa a salvar a vida de alguém. A vida humana, para o
Min. César Peluso, não pode ser relativizada, sendo um valor supremo e
inegociável. A viabilidade de vida extrauterina não é requisito para
caracterização do crime de aborto.
Sob ótica do Bobbio:
Segundo
Norberto Bobbio, “os direitos do homem,
por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual. ” (BOBBIO,
Norberto. op. cit. p.5.)
A
corrente do pensamento jurídico emerge com base na reação política frente aos
ideais burgueses da época, demonstrando a necessidade de se “separar” a
justiça do Direito no campo científico, buscando a historicidade como resposta
a toda e qualquer contestação da cientificidade do Direito, mesmo porque, de
acordo com Norberto Bobbio, a “tendência
historicista apresenta geralmente a afirmação do caráter historicamente
relativo das formas de organização política e social e, portanto, mais
globalmente, dos valores políticos.” (BOBBIO, Norberto;
MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília:
Universidade de Brasília, 1986. p.581.).
Opinião Pessoal:
Um dos argumentos referentes à defesa de vida, os
direitos reprodutivos da gestante, assim como os princípios da dignidade da
pessoa humana, da vontade, da legalidade, da privacidade e da liberdade devem
ser coligadas em ponto de equilíbrio com a dignidade do feto por meio da Interpretação
conforme a Constituição. Portanto,
a moral, o direito e a ética integram o valor, adotando a metodologia limitativa
que exemplifica: a interpretação. Ademais, a autonomia reprodutiva da gestante
de feto anencéfalo integra a esfera da liberdade que não pode ser
restringida pela política, sob pena de comprometer a sua dignidade e direitos
humanos.
A
vida é o direito mais fundamental dentre todos os consagrados no âmbito
constitucional, por ser considerado como “pré-requisito à existência e até ao
exercício dos demais direitos (MORAES, Alexandre de. Direito
constitucional. São Paulo: Atlas, 2006. p.30)”.
Nos
casos de fetos anencéfalos, não há que se falar na necessidade de amparo ao
direito à vida resguardado constitucionalmente, na medida em que o feto não
possui uma forma de vida viável.
4-
O Julgamento da ADPF n. 54 à Luz da Filosofia de Ronald
Dworkin
O
autor parte da distinção entre duas formas de interesse do governo na proteção
da vida humana a derivativa e independente. Quando se fala de um interesse
derivativo, pressupõe-se que o feto é uma pessoa constitucional que tem
direitos e interesses a partir da concepção, inclusive o direito à vida, e que
o governo deve protegê-los tanto quanto protege os direitos e interesses de
qualquer indivíduo que esteja sujeito a sua autoridade.
Diferentemente,
o governo pode reivindicar um interesse independente de proteger a vida do
feto, objetivando proteger a vida humana como algo sagrado, cujo valor
intrínseco independe de ser o feto uma pessoa constitucional.
Dworkin
insiste na distinção entre a pretensão do governo de encorajar a
responsabilidade e coagir em conformidade com a concepção majoritária sobre o
valor intrínseco da vida. Para Fleming, Dworkin, ao distinguir entre
responsabilidade e coerção, está afirmando que o governo não está promovendo a
responsabilidade, a menos que respeite o direito do indivíduo de decidir em
última análise por si próprio. Trata-se, portanto, da responsabilidade como
autonomia.
O Ministro Gilmar Mendes acrescentou ao
dispositivo de decisão prolatada pelo Colegiado determinadas medidas
solicitadas ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina, para
assegurar condições de segurança do diagnóstico da anencefalia e de realização
do procedimento cirúrgico, sendo acompanhado pelo Ministro Celso de Mello.
As
condições seriam as seguintes: a) atestado subscrito por, no mínimo, dois médicos
especialistas e segundo técnicas de exames suficientemente seguras; b)
observância do período de três dias entre a data do diagnóstico e da
intervenção cirúrgica; e; c) disponibilização, por parte do Poder Público, em
favor de gestantes de menor poder aquisitivo, de acompanhamento psicológico,
tanto antes quanto depois do procedimento cirúrgico. Tal condição pretendia
determinar ao Ministério da Saúde a criação de serviços de saúde qualificados
para as mulheres que decidirem pela continuidade da gravidez de feto anencéfalo
(inclusive atendimento com assistência terapêutica aos transtornos mentais
decorrentes da anencefalia). Nesse ponto, os Ministros Gilmar Mendes e Celso de
Mello ficaram vencidos apenas neste acréscimo de condições ao dispositivo da decisão.
Nesse
cenário, a quarta condição, proposta pelo Min. Gilmar Mendes, revelou
implicitamente a consagração da idéia Dworkiniana da responsabilidade, mas
infelizmente, foi rejeitada pelo Plenário.
5-CONCLUSÃO
Entendemos
como coerente o julgamento do STF na ADPF n. 54, onde, através da interpretação
conforme a constituição fundamentou-se de forma a complementar os conceitos que
integram o domínio do valor (moral, direito e a ética), inexistindo conflito
entre os mesmos.
Mesmo
em defesa da potencialidade de vida, os direitos reprodutivos da gestante,
assim como os princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia da
vontade, da legalidade, da privacidade e da liberdade devem ser interligados em
uma rede harmoniosa com a dignidade do feto por meio da técnica da Interpretação conforme
a Constituição.
O
Min. Gilmar Mendes, bem como o Min. Celso Mello consagraram uma reflexão acerca
da continuidade da gestação de feto anencéfalo através de um entendimento da
integridade moral no ordenamento jurídico. Não haveria potencialidade de
vida, pois fetos anencéfalos não possuem viabilidade fora do útero.
O
Ministro Marco Aurélio Mello interpretou o princípio da dignidade humana
associado aos princípios da intimidade, liberdade e da autodeterminação pessoal
da gestante. Dessa forma, se desenvolveu um novo conceito de dignidade humana,
onde se resguarda uma esfera de independência ética inerente de cada pessoa.
Disso
se infere que a interpretação dworkiana foi método fundamental para o
julgamento coerente da ADPF, de forma que, sem modificar o texto da norma, se
extraiu o verdadeiro sentido e vontade do legislador, baseado no progresso
científico, na evolução cultural da sociedade, e, à luz e harmonia dos
princípios constitucionais, construindo um conceito atual, coerente e justo,
acerca do feto anencéfalo e o direito à dignidade e liberdade de
autodeterminação da gestante do feto.
Referências:
·
Livros:
Ø
BARROSO,
Luís Roberto. "Gestação de Fetos Anencefálicos e Pesquisas com
Células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição". In: SARMENTO, Daniel; GALDINO,
Flavio (Org.). Direitos
fundamentais: estudos em
homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
Ø DWORKIN, Ronald. "Objective and
Truth: you'd better believed it" In: Philosophy and
Public Affairs, Princeton, v. 25, n. 2, Princeton University Press,
1996______.
Ø Domínio
da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo:
Martins Fontes, 2003a.
Ø DALLARI,
Dalmo de Abreu,1931- O que é participação política/ Dalmo de Abreu Dallari.-
São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense,1984.
Ø DINIZ,
Maria Helena. Código Civil anotado/ Maria Helena Diniz – 15. Ed. rev. e atual.-
São Paulo: Saraiva,2010.
·
Internet:
Ø BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental. Anencefalia. Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 ajuizada pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Voto da Min. Carmem Lúcia. Plenário.
Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília-DF, j.11/04/2012a. Informativo do
STF n. 661. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm#ADPF%20e%20interrup%C3%A7%C3%A3o%20de%20gravidez%20de%20feto%20anenc%C3%A9falo%20-%2026>.
Ø
Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental. Anencefalia. Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n. 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde. Voto do Min. Carlos Ayres de Britto. Plenário.
Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília-DF, j.12/04/2012c. Informativo do
STF n. 661. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm#ADPF%20e%20interrup%C3%A7%C3%A3o%20de%20gravidez%20de%20feto%20anenc%C3%A9falo%20-%2026>
Ø Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental. Anencefalia. Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 ajuizada pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Voto do Min. Ricardo Lewandowiski.
Plenário. Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília-DF, j. 11/04/2012j.
Informativo do STF. Disponível em:<http://s.conjur.com.br/dl/voto-lewandowski-feto-anencefalo.pdf>. Acesso em: 29 ago 2015.
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