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terça-feira, 16 de maio de 2017

Considerações sobre anencefalia na ADPF 54

1-    Introdução
 O Ordenamento Jurídico Pátrio dispõe no artigo segundo do Código Civil de 2002 que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei dispõe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
 No ensinamento da doutrinadora Maria Helena Diniz “O Código Civil, no artigo sub examine, não contemplou os requisitos de viabilidade (habilis vitae), ou seja, permanência da vida no recém-nascido, e forma humana para o início da personalidade natural, afirmando que a personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, ainda que o recém-nascido venha falecer instantes depois. Basta a vitalidade, pois “o nascimento com vida torna, na mesma ocasião, o ente humano sujeito de direito e, em conseqüência, transforma em direitos subjetivos as expectativas de direito que lhe tinham sido atribuídas na fase da concepção” (RT, 182:438). ”
            Vale mencionar que de acordo com a Resolução nº 1/88 do Conselho Nacional de Saúde, o nascimento com vida é “a expulsão ou extração completa do produto da concepção, quando, após a separação, respire e tenha batimentos cardíacos, tendo sido ou não cortado o cordão, esteja ou não desprendida a placenta”.
            Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari “O fato de existir a necessidade de viver em sociedade tem conseqüências muito sérias. Uma delas é que os problemas de cada pessoa devem ser resolvidos sem esquecer os interesses dos demais integrantes da mesma sociedade. Assim, não se pode admitir como regra que resolver qualquer dificuldade de um indivíduo, ou para atender aos interesses de um só, todos os demais devam sofrer prejuízos ou arcar com sacrifícios”.
            Continuando com supracitado autor “Existem certos casos em que um direito de uma pessoa deve ser protegido mesmo que muitos tenham de fazer algum sacrifico para assegurar essa proteção. É preciso, porém, que esteja prevista numa regra legal legítima essa hipótese, sendo também indispensável que tal proteção não signifique um privilégio a discriminação. Todo indivíduo tem direito à proteção de sua liberdade, de sua integridade física e de outros bens que são necessários para que uma pessoa não seja rebaixada de sua natureza humana. Mas também em relação a esses direitos e valores é preciso ter em conta que todos são iguais, devendo merecer a mesma proteção”.
            Na lição de Norberto Bobbio: “Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente. Mas até mesmo as decisões de grupos são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos”.           
            “A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde no Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria tipificado no Código Penal nos artigos 124, 126 e 128, I e II onde prevaleceu o voto do Ministro Relator Marco Aurélio de Mello vencido os Ministros César Peluso e Ricardo Lewandowiski”. Maria Eugenia Bunchaft.  
            A caracterização da anencefalia é compreendida como uma má-formação congênita sendo, portanto, ausência dos hemisférios cerebrais. “Trata-se de uma alteração decorrente de falha no início do desenvolvimento embrionário e do mecanismo de fechamento do tubo neural” Maria Eugenia Bunchaft. No entanto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde afirma em nota prévia ser em distintas as situações de antecipação terapêutica e a do aborto, tendo em vista que este último pressupõe potencialidade de vida extrauterina do feto. Resgata princípios constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade bem como o direito à saúde. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde considera que a antecipação terapêutica resgata os princípios acima citados por se tratar de uma hipótese cujo tratamento eficaz é a interrupção da gestação ante o feto estar com a saúde comprometida bem como o seu desenvolvimento.
 A antecipação terapêutica se diferencia do aborto pelo fato de se configurar em uma circunstância onde o feto já está acometido pela anencefalia e a possibilidade de persistir a vida é ínfima.  O aborto é configurado em casos de violência sexual para que se preserve a mulher vitimada evitando que tal situação tenha conseqüência de maior dano psicológico. 
            Sob uma perspectiva substancialista, Ronald Dworkin sustenta que a interpretação racionalmente construída a partir de princípios substantivos deve considerar, não apenas a Constituição como um todo, mas também a história, as tradições e as práticas constitucionais. Seguindo este raciocínio no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, o Plenário do Supremo Tribunal Federal utilizou-se de uma leitura moral do Ordenamento Jurídico e de uma visão reconstrutiva que, superando auto compreensões assimétricas de mundo, resguardou a independência ética de mulheres e consagrou de forma normativamente sensível o ideal de integridade, tão valioso a Dworkin.  
            A independência ética das mulheres faz com que as mesmas se sintam amparadas juridicamente conferindo total discricionariedade sobre o aborto de feto anencéfalo sem serem penalizadas, considerando que a sociedade brasileira na atual conjuntura só favoreceu a mulher na Lei Maria da Penha. O Ordenamento Jurídico devia um amparo legal às mulheres por uma questão de ética. O ideal de integridade se faz necessário porque o aborto só será permitido mediante o diagnóstico de anencefalia.        
              2-O papel da interpretação na teoria de Ronald Dworkin.
Dworkin sustenta que é sempre possível encontrar uma interpretação que seja a melhor, a única resposta correta para o caso concreto. Mas para que isso ocorra, é necessário que se recorra a juízos morais, que é precisamente a atividade realizada na etapa pós-interpretativa.
O processo interpretativo de Dworkin passa pela fase de identificação do fato jurídico, a adequação do fato às normas e princípios cabíveis para a solução da lide, e então segue a fase de justificação da decisão, a busca da melhor resposta ao caso apresentado. Dworkin sustenta que um juiz tem o dever legal de analisar de modo mais abrangente as fontes de lei, os princípios e a história jurídica da comunidade, de maneira que torne a atividade judiciária capaz de alcançar os casos mais difíceis e ofereça a melhor resposta à lide apresentada
Entretanto, mesmo reconhecendo as divergências quanto ao sentido das normas jurídicas, Dworkin pretende que, ao se aplicar o método interpretativo proposto por ele, possa-se conferir à norma jurídica um sentido mais consistente com a nossa prática jurídica, analisada em uma perspectiva ampla.
Como Dworkin adota uma teoria interpretativa, entende que as divergências não são causadas imediatamente em razão da textura aberta das normas jurídicas, mas porque há fortes argumentos de que uma interpretação diversa seria mais coerente com os princípios e virtudes de nossa prática jurídica.
Em outras palavras, a obscuridade de uma norma não deve ser apontada como uma característica inerente à sua própria essência, mas presente pela simples razão de existirem fortes argumentos de que outro sentido seria mais adequado frente ao conjunto de princípios e virtudes de nossa prática jurídica.
 No mesmo texto, a autora diz que Dworkin cita as mulheres e homens como exemplo. É muito importante que os juízes pensem nas pessoas, senão nada tem sentido. As leis são feitas para as pessoas.
Por isso que Dworkin afirma que “a interpretação da prática social se concretiza dentro de seu próprio âmbito e não fora dela”. Quer dizer, que a prática social dever ser tomada em conta como prática social, não como outra coisa externa (outros valores que não são observados na prática social, na vida social das pessoas). Isso quer dizer que sempre deve se considerar quais são as práticas sociais dos sujeitos implicados, e interpretar essas práticas. Sempre que se quer modificar uma lei é importante saber o que acontece com as pessoas, nesse caso, com as mulheres.


2.1- ETAPAS DA INTERPRETAÇÃO 
O intérprete deve encontrar “uma justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na etapa pré-interpretativa”. Essa justificativa permitirá dizer qual (is) significado (s) é (são) adequado (s) à prática analisada. Nessa fase também é necessário um certo acordo sobre quais significados são adequados, pois pretendemos apenas interpretar e não inventar algo novo.
Por fim, na etapa pós-interpretativa, o intérprete deverá ajustar “sua ideia daquilo que a prática das mulheres ‘realmente’ requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa”. Nesse momento, pretende-se apontar, entre os significados considerados adequados aquele que mostra a prática das mulheres sob sua melhor luz. Aqui, a justificativa dependerá de convicções mais substantivas que aquelas apresentadas na fase de adequação. Entretanto, “essas convicções não precisam ser tão compartilhadas pela comunidade quanto a noção do intérprete acerca dos limites da pré-interpretação, ou mesmo quanto a suas convicções sobre o devido grau de adequação”.
Naturalmente, como Dworkin reconhece, haverá divergências quanto às dimensões da prática interpretada e, ainda maiores serão as controvérsias a respeito da melhor justificativa para tal prática social.
Não há propriamente apenas uma teoria interpretativa do direito, mas várias. As teorias interpretativas de cada juiz são diferentes porque cada um deles tem suas próprias convicções sobre a prática do direito: seus propósitos, objetivos ou princípios justificativos são identificados individualmente.
2.2- CONCEPÇÕES DE DIREITO
As três concepções interpretativas do direito: “convencionalismo”, “pragmatismo jurídico” e “direito como integridade”. Apenas a primeira e a última, aceitam essa proposta de justificativa geral do direito.
Para um pensador convencionalista, o direito é aquilo que realmente é, e não o que deveria ser. Assim, a tarefa do juiz é simplesmente aplicar esse direito, sem procurar modificá-lo de acordo com sua própria ética ou política.
O pragmatismo jurídico, por sua vez, “nega que as decisões políticas do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do Estado”. Assim, contesta o argumento de que as pessoas tenham direitos com base em decisões políticas do passado. Entretanto, por razões de estratégia, para evitar a perda de controle pelo governo e, desta forma, piorar a comunidade como um todo, o pragmatismo jurídico pode optar por disfarçar sua decisão real simulando a aplicação da lei.
Assim, o pragmático apenas olha para a tradição jurídica constituída pelas decisões políticas do passado como estratégia para disfarçar as decisões que toma com base numa perspectiva do que será melhor para a comunidade no futuro. Desta forma, não rejeita as pretensões morais ou políticas.
A integridade é, por definição, uma questão de princípio. Assim, na concepção do direito como integridade, “as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade”.
A coerência de princípios permite que os cidadãos tenham direitos não declarados explicitamente na legislação e nos precedentes, mas apenas implicitamente reconhecidos através de princípios que justificam essas decisões políticas do passado.
Por isso acreditamos que no processo de decisão deve-se predominar a integridade no caso da anencefalia pois como foi dito, permite que as pessoas tenham direitos não declarados na legislação, através da coerência de princípios.
2.3-CONCLUSÃO
Dworkin parte do pressuposto de que o direito é interpretativo, de maneira que os juízes devem decidir o que é o direito, interpretando-o. Assim, teorias gerais do direito são, na realidade, interpretações gerais de nossa própria prática judicial.
Entre as concepções interpretativas que considera (“pragmatismo jurídico”, “convencionalismo” e “direito como integridade”), destaca o direito como integridade.
É a integridade que, para Dworkin, explica melhor o que é o direito. Mas a integridade não se impõe por si mesma. Tanto as convicções a respeito da adequação quantos aquelas sobre a equidade, a justiça e o devido processo legal adjetivo, são conflitantes entre si. Assim, o intérprete deve considerar esses conflitos e tentar tornar “o histórico legal da comunidade o melhor possível do ponto de vista da moral política”. Por conseguinte, o direito como integridade teria o condão de oferecer uma melhor adequação e uma melhor justificação de nossa prática jurídica como um todo.
Portanto, para Dworkin, a teoria geral do direito é interpretativa e justificadora, e, mais do que isso, é parte do próprio direito, como parte geral de qualquer decisão.
Entende-se que o direito não pode ser descrito, mas apenas interpretado, pois essa é a melhor explicação do que é o direito. A preocupação de Dworkin em delinear uma teoria do direito como integridade, levando-o à firme tentativa de adequá-la e justificá-la como a teoria que mostra nossa prática jurídica sob sua melhor luz, reflete sua concepção de que o direito apenas pode ser interpretado e não descrito.


3-Alguns Aspectos do Julgamento da ADPF n. 54
Para o advogado da época (hoje ministro do STF) Luis Roberto Barroso, ao declarar a não incidência do Código Penal a uma determinada situação, estaria o STF interpretando a constituição, "Como se sabe, o Tribunal, por maioria, conheceu da ação, reconhecendo tratar-se de uma questão de interpretação constitucional e não de criação de direito novo." (BARROSO, 2006, p. 701).
Ainda é possível acrescentar que, de acordo com Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “A lei não é apenas um instrumento para conduzir processos sociais de acordo com conhecimentos ou prognoses sociológicas; ela é ainda expressão estável de avaliações ético-sociais e, portanto, jurídicas, das ações humanas, ela deve dizer o que para cada um é direito’’. (Apud PATTO, Pedro Maria Godinho Vaz. O sentido da criminalização do aborto. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Almedina, jan.-mar. 2005. p.41.)
O Código Penal não pune nem o aborto necessário nem o humanitário. O pedido inicial da ADPF n. 54 era o de que o STF declarasse a não incidência da criminalização da antecipação terapêutica à luz da Constituição Federal e dos princípios a ela inerentes por meio de uma interpretação evolutiva que permite a adaptação do texto legal à evolução da sociedade. Assim, “[...] impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana”. (BARROSO, 2006, p. 684).
            Em 01 de julho de 2004, o pedido liminar foi concedido pelo Min. Marco Aurélio Mello, assegurando o direito da gestante em optar pela antecipação terapêutica do parto, se for comprovado à anencefalia por laudo médico. A liminar teve efeitos por mais três meses, pois, em 27 de abril de 2005, foi tornada sem efeito pelo Plenário do STF, por sete votos a quatro; entretanto, igual votação admitiu que a ADPF fosse processada para que seu mérito fosse apreciado. Nessa ocasião, os Ministros Carlos Ayres de Britto, Gilmar Mendes, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim posicionaram-se rejeitando o argumento segundo o qual seria incabível a propositura da ADPF n. 54. Permaneceram vencidos os Ministros Eros Grau, Cesar Peluso e Ellen Gracie, que não conheceram da ação, sob o argumento segundo o qual a mesma ofenderia a separação de poderes, criando uma nova hipótese de exclusão da ilicitude para o aborto. Com efeito, no julgamento de mérito realizado em abril de 2012, o Ministro Relator, Marco Aurélio Mello e o Min. Celso de Mello destacaram que a Constituição consagra a laicidade. De acordo com o Min. Marco Aurélio Mello, a laicidade do Estado atuaria de modo dúplice: salvaguardaria as diversas confissões religiosas do risco da intervenção estatal e impediria que dogmas da fé determinassem o conteúdo dos atos estatais.
Nessa linha de raciocínio, o Ministro relator citou a Resolução n. 1.752/2004 do Conselho Federal de Medicina, que consignou serem os anencéfalos natimortos cerebrais. Assim, o direito à vida de um feto inviável não pode prevalecer sobre a dignidade da pessoa humana, privacidade, saúde e integridade física e psicológica da mãe. Nas palavras do Ministro relator, ’’[...] o anencéfalo jamais se tornará pessoa. Não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. O fato de respirar e ter batimento cardíaco não altera essa conclusão, até porque, como acentuado pelo Dr. Thomaz Rafael Gollop, a respiração e o batimento cardíaco não excluem o diagnóstico de morte cerebral. ’’ (BRASIL, 2012)

Em síntese, o Marco Aurélio Mello também refutou o argumento de que se trata de aborto eugênico, pois não se cuida de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Inexiste direito à vida dos anencéfalos, pois anencefalia e vida são termos antiéticos. Ademais, nas décadas de 1930 e 1940, a medicina não possuía recursos tecnológicos para identificar previamente a anencefalia.
Impor a manutenção da gravidez pode implicar o aumento da morbidade e dos riscos do parto e do pós-parto, além de consequências psicológicas severas. Por outro lado, Celso de Mello, Marco Aurélio Mello e Rosa Weber destacaram que inexiste direito à vida, tendo em vista o conceito jurídico de morte previsto na Lei n. 9.394/97. Para o Min. Marco Aurélio Mello, eventual direito à vida do anencéfalo cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física psicológica e moral e à saúde). Em suma, deverão observar o princípio da razoabilidade-proporcionalidade, inclusive e especialmente na vedação do excesso.
O Ministro Celso de Mello, ainda que não se entenda típico, não há delituosidade por inexigibilidade de conduta diversa. Não se pode obrigar a mulher a prolongar a gravidez, com prejuízos à saúde física e devido aos altos índices de letalidade, segundo o depoimento do Dr. José Aristodemo Pinotti, Professor da Unicamp. (BRASIL, 2012).
            O Min. Marco Aurélio Mello salientou também que inexiste direito à vida dos anencéfalos, mas que, ainda que existisse, não seria absoluto, tendo em vista o artigo 5º, inciso XLVII da CF, que admite a pena de morte em caso de guerra declarada na forma do artigo 84, inciso XIX, além de o direito à vida não ser absoluto, a proteção a ele conferida comporta diferentes gradações consoante enfatizou o Supremo no julgamento da ADI n. 3.510. ” (BRASIL, 2012).
O Ministro relator citou o depoimento do Dr. Jorge Andalaft Neto, representante da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, que enfatizou o fato de a gestação de feto anencéfalo envolver maiores riscos, tendo em vista dados da Organização Mundial de Saúde e do Comitê da Associação de Ginecologia e Obstetrícia Americana. Impor a manutenção da gravidez pode implicar o aumento da morbidade e dos riscos do parto e do pós-parto, além de consequências psicológicas severas.
Para o Min. Marco Aurélio Mello, eventual direito à vida do anencéfalo cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física psicológica e moral e à saúde.
Diferentemente, o Min. Gilmar Mendes considerou inadequado tratar a antecipação terapêutica da gestação de anencéfalos como atípico, pois parte da sociedade brasileira defenderia a vida e a dignidade desses fetos. Alegou a possibilidade de defender o aborto de fetos anencéfalos a partir das opções legislativas de excludentes da ilicitude já existentes no Código Penal, sendo hipótese de estado de necessidade. Constatou que o aborto de fetos anencéfalos deveria estar compreendido entre as causas excludentes da ilicitude previstas no Código Penal, mas seria inimaginável para o legislador de 1940, pelas limitações tecnológicas existentes, incluir a hipótese no texto legal.
Nessa perspectiva, o Min. Luiz Fux destacou que o princípio da proporcionalidade não se restringe à categoria de proibição de excesso, contemplando também um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a violações contra direitos fundamentais de terceiros: a violação da proibição de insuficiência. Diante do exposto, depreende-se que o princípio da razoabilidade- -proporcionalidade, além de parâmetro de validade para restrições a direitos fundamentais, também atua na dupla dimensão de proibição do excesso e da insuficiência.
"Um bebê anencéfalo é geralmente cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor. Apesar de que alguns indivíduos com anencefalia possam viver por minutos, a falta de um cérebro descarta complementarmente qualquer possibilidade de haver consciência. [...] Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal equivale à tortura”, (Luiz Fux)
A Ministra Carmem Lúcia destacou que a questão discutida seria o direito à vida e à liberdade, considerada a possibilidade jurídica de a grávida de feto anencéfalo escolher qual seria o melhor caminho a ser seguido, quer continuando, quer interrompendo a gravidez. Reportou-se também ao princípio constitucional da dignidade da pessoa e ao direito à saúde. (BRASIL, 2012).
Sob esse aspecto, o Min. Celso de Mello mencionou que a Declaração Americana sobre Direitos da Pessoa Humana e Pacto Internacional das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos consagraram a inviolabilidade do direito à vida, mas não incorporaram a noção de direito à vida desde a concepção.
            É de se mencionar que, para o Min. Carlos Ayres de Britto, a gravidez se destina à vida, não à morte. A vida humana surge com o zigoto, mas não se deve confundir embrião de vida humana com vida humana embrionária (BRASIL, 2012).
“[O aborto do feto anencéfalo] é um direito que tem a mulher de interromper uma gravidez que trai até mesmo a ideia-força que exprime a locução ‘dar à luz’. Dar à luz é dar à vida e não dar à morte. É como se fosse uma gravidez que impedisse o rio de ser corrente”, (Carlos Ayres Britto).
[...], sobretudo a autonomia de vontade ou liberdade para aceitar, ou deixar de fazê-lo, o martírio de levar às últimas conseqüências uma tipologia de gravidez que outra serventia não terá senão a de jungir a gestante ao mais doloroso dos estágios: o estágio de endurecer o coração para a certeza de ver o seu bebê involucrado numa mortalha. Experiência quiçá mais dolorosa do que a prefigurada pelo compositor Chico Buarque de Hollanda (‘a saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto do filho que já morreu’), pois o fruto de um parto anencéfalo não tem se quer um quarto previamente montado para si. Nem quarto nem berço nem enxoval nem brinquedos, nada desses amorosos apetrechos que tão bem documentam a ventura da chegada de mais um ser humano a este mundo de Deus. (Carlos Ayres Britto).
De um lado, os Ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes assinalaram a relevância da pluralização do debate constitucional, garantindo legitimidade democrática ao STF. De fato, Gilmar Mendes pressupôs um norte interpretativo a partir da leitura do aborto humanitário, que também resguarda a saúde psíquica da gestante, sendo necessário adaptar as leis a novos aspectos da realidade social para vislumbrar causas supralegais de exclusão da juridicidade e culpabilidade.
O Min. Peluso ressaltou a necessidade de preservar a dignidade da vida intrauterina destacou que todos os fetos anencéfalos, a menos que já estivessem mortos, seriam dotados de capacidade de movimento autógeno vinculado ao processo contínuo da vida. A dignidade humana independe das deficiências que o feto possa porventura vir a ter, sendo insuscetíveis de o transformarem em coisa.
            Na sua percepção, transformar o feto em objeto de disposição alheia é equipará- -lo a coisa e somente ela é objeto de disposição alheia, pois ser humano é sujeito de direito. A vida humana com sua dignidade intrínseca não pode ser relativizada fora das hipóteses legais. Na sua interpretação, reduzir o anencéfalo à condição de lixo, implica a aproximação com práticas eugênicas. A analogia com a presunção de morte por cessação da atividade encefálica, visando retirada de tecidos, órgãos para fins de transplante, não é adequada, pois nesse caso o aborto não visa a salvar a vida de alguém. A vida humana, para o Min. César Peluso, não pode ser relativizada, sendo um valor supremo e inegociável. A viabilidade de vida extrauterina não é requisito para caracterização do crime de aborto.
Sob ótica do Bobbio:
Segundo Norberto Bobbio, “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual. ” (BOBBIO, Norberto. op. cit. p.5.)
A corrente do pensamento jurídico emerge com base na reação política frente aos ideais burgueses da época, demonstrando a necessidade de se “separar” a justiça do Direito no campo científico, buscando a historicidade como resposta a toda e qualquer contestação da cientificidade do Direito, mesmo porque, de acordo com Norberto Bobbio, a “tendência historicista apresenta geralmente a afirmação do caráter historicamente relativo das formas de organização política e social e, portanto, mais globalmente, dos valores políticos.” (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília, 1986. p.581.).
Opinião Pessoal:
Um dos argumentos referentes à defesa de vida, os direitos reprodutivos da gestante, assim como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vontade, da legalidade, da privacidade e da liberdade devem ser coligadas em ponto de equilíbrio com a dignidade do feto por meio da Interpretação conforme a Constituição. Portanto, a moral, o direito e a ética integram o valor, adotando a metodologia limitativa que exemplifica: a interpretação. Ademais, a autonomia reprodutiva da gestante de feto anencéfalo integra a esfera da liberdade que não pode ser restringida pela política, sob pena de comprometer a sua dignidade e direitos humanos.
A vida é o direito mais fundamental dentre todos os consagrados no âmbito constitucional, por ser considerado como “pré-requisito à existência e até ao exercício dos demais direitos (MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2006. p.30)”.
            Nos casos de fetos anencéfalos, não há que se falar na necessidade de amparo ao direito à vida resguardado constitucionalmente, na medida em que o feto não possui uma forma de vida viável.
4- O Julgamento da ADPF n. 54 à Luz da Filosofia de Ronald
Dworkin

O autor parte da distinção entre duas formas de interesse do governo na proteção da vida humana a derivativa e independente. Quando se fala de um interesse derivativo, pressupõe-se que o feto é uma pessoa constitucional que tem direitos e interesses a partir da concepção, inclusive o direito à vida, e que o governo deve protegê-los tanto quanto protege os direitos e interesses de qualquer indivíduo que esteja sujeito a sua autoridade.

Diferentemente, o governo pode reivindicar um interesse independente de proteger a vida do feto, objetivando proteger a vida humana como algo sagrado, cujo valor intrínseco independe de ser o feto uma pessoa constitucional.

Dworkin insiste na distinção entre a pretensão do governo de encorajar a responsabilidade e coagir em conformidade com a concepção majoritária sobre o valor intrínseco da vida. Para Fleming, Dworkin, ao distinguir entre responsabilidade e coerção, está afirmando que o governo não está promovendo a responsabilidade, a menos que respeite o direito do indivíduo de decidir em última análise por si próprio. Trata-se, portanto, da responsabilidade como autonomia.

 O Ministro Gilmar Mendes acrescentou ao dispositivo de decisão prolatada pelo Colegiado determinadas medidas solicitadas ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina, para assegurar condições de segurança do diagnóstico da anencefalia e de realização do procedimento cirúrgico, sendo acompanhado pelo Ministro Celso de Mello.

As condições seriam as seguintes: a) atestado subscrito por, no mínimo, dois médicos especialistas e segundo técnicas de exames suficientemente seguras; b) observância do período de três dias entre a data do diagnóstico e da intervenção cirúrgica; e; c) disponibilização, por parte do Poder Público, em favor de gestantes de menor poder aquisitivo, de acompanhamento psicológico, tanto antes quanto depois do procedimento cirúrgico. Tal condição pretendia determinar ao Ministério da Saúde a criação de serviços de saúde qualificados para as mulheres que decidirem pela continuidade da gravidez de feto anencéfalo (inclusive atendimento com assistência terapêutica aos transtornos mentais decorrentes da anencefalia). Nesse ponto, os Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello ficaram vencidos apenas neste acréscimo de condições ao dispositivo da decisão.
Nesse cenário, a quarta condição, proposta pelo Min. Gilmar Mendes, revelou implicitamente a consagração da idéia Dworkiniana da responsabilidade, mas infelizmente, foi rejeitada pelo Plenário.




5-CONCLUSÃO

Entendemos como coerente o julgamento do STF na ADPF n. 54, onde, através da interpretação conforme a constituição fundamentou-se de forma a complementar os conceitos que integram o domínio do valor (moral, direito e a ética), inexistindo conflito entre os mesmos.
Mesmo em defesa da potencialidade de vida, os direitos reprodutivos da gestante, assim como os princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia da vontade, da legalidade, da privacidade e da liberdade devem ser interligados em uma rede harmoniosa com a dignidade do feto por meio da técnica da Interpretação conforme a Constituição.
O Min. Gilmar Mendes, bem como o Min. Celso Mello consagraram uma reflexão acerca da continuidade da gestação de feto anencéfalo através de um entendimento da integridade moral no ordenamento jurídico. Não haveria potencialidade de vida, pois fetos anencéfalos não possuem viabilidade fora do útero.
 O Ministro Marco Aurélio Mello interpretou o princípio da dignidade humana associado aos princípios da intimidade, liberdade e da autodeterminação pessoal da gestante. Dessa forma, se desenvolveu um novo conceito de dignidade humana, onde se resguarda uma esfera de independência ética inerente de cada pessoa.
Disso se infere que a interpretação dworkiana foi método fundamental para o julgamento coerente da ADPF, de forma que, sem modificar o texto da norma, se extraiu o verdadeiro sentido e vontade do legislador, baseado no progresso científico, na evolução cultural da sociedade, e, à luz e harmonia dos princípios constitucionais, construindo um conceito atual, coerente e justo, acerca do feto anencéfalo e o direito à dignidade e liberdade de autodeterminação da gestante do feto.














Referências:
·        Livros:
Ø  BARROSO, Luís Roberto. "Gestação de Fetos Anencefálicos e Pesquisas com Células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição". In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio (Org.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 
Ø  DWORKIN, Ronald. "Objective and Truth: you'd better believed it" InPhilosophy and Public Affairs, Princeton, v. 25, n. 2, Princeton University Press, 1996______. 

Ø  Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.   

Ø  DALLARI, Dalmo de Abreu,1931- O que é participação política/ Dalmo de Abreu Dallari.- São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense,1984.

Ø  DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado/ Maria Helena Diniz – 15. Ed. rev. e atual.- São Paulo: Saraiva,2010.           
·         Internet:
Ø  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Anencefalia. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Voto da Min. Carmem Lúcia. Plenário. Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília-DF, j.11/04/2012a. Informativo do STF n. 661. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm#ADPF%20e%20interrup%C3%A7%C3%A3o%20de%20gravidez%20de%20feto%20anenc%C3%A9falo%20-%2026>.
Ø  Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Anencefalia. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Voto do Min. Carlos Ayres de Britto. Plenário. Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília-DF, j.12/04/2012c. Informativo do STF n. 661. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm#ADPF%20e%20interrup%C3%A7%C3%A3o%20de%20gravidez%20de%20feto%20anenc%C3%A9falo%20-%2026>
Ø  Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Anencefalia. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Voto do Min. Ricardo Lewandowiski. Plenário. Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília-DF, j. 11/04/2012j. Informativo do STF. Disponível em:<http://s.conjur.com.br/dl/voto-lewandowski-feto-anencefalo.pdf>. Acesso em: 29 ago 2015.         [ Links ]
       



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